Ações de reparação por danos causados por cartéis: uma importante virada de página para o Direito Antitruste Brasileiro
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Os cartéis são acordos entre empresas concorrentes para fixar preços, dividir mercados ou restringir a oferta, de forma a reduzir a concorrência e criar artificialmente um ambiente monopolista. Como consequência, a formação de um cartel eleva os preços ao consumidor, torna o mercado menos dinâmico e impede que empresas consigam competir em igualdade de condições, quando não as leva à falência.[1]
Práticas anticoncorrenciais, como a formação de cartéis, configuram verdadeira espoliação do mercado nacional, uma vez que o excedente da produção é transferido diretamente para os oligopólios.[2] Trata-se, portanto, de uma das mais graves infrações à Ordem Pública Econômica, que é subordina e condiciona a atividade econômica aos princípios e objetivos previstos na Constituição Federal brasileira: valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, soberania nacional, redução das desigualdades regionais e sociais, propriedade privada, função social da propriedade, livre concorrência e defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, a busca pelo pleno emprego e tratamento favorecido para as empresas brasileiras de pequeno porte (Art. 170)
A Lei nº 12.529/2011 (“Lei de Defesa da Concorrência”) é um dos aparatos que visam a concretizar os ditames da Ordem Pública Econômica. No que tange aos cartéis, foram estabelecidas previsões robustas tanto para reprimir a prática, como a aplicação de sanções administrativas como multas de até 20% do faturamento bruto da empresa infratora (Art. 37), quanto para garantir a reparação de danos às vítimas de práticas anticompetitivas.
Especificamente sobre a reparação, o Art. 47 prevê que as vítimas de cartéis podem buscar indenização pelos prejuízos sofridos, o que enseja a propositura de Ações de Reparação por Danos Concorrenciais (“ARDCs”). Contudo, apesar da previsão expressa da possibilidade de buscar judicialmente a reparação, a disseminação histórica das ARDCs no Brasil é insatisfatória, ao contrário de países como os Estados Unidos da América, onde as demandas coletivas e individuais de indenização por danos concorrenciais são amplamente utilizadas.
Por muito tempo, a insuficiência normativa no que tange à determinação do prazo prescricional para o ajuizamento das ARDCs na Lei de Defesa da Concorrência gerou insegurança jurídica e limitou a eficácia da busca por indenizações, dando espaço à manutenção dos efeitos danosos dos cartéis à ordem econômica. A título de exemplo, decisões judiciais adotaram como marco inicial do prazo prescricional da pretensão à reparação, a data da violação do direito, desconsiderando a complexidade na formação e detecção dos cartéis, que operam de maneira sigilosa e sofisticada, bem como o prolongado tempo que o CADE pode levar para concluir suas investigações.
Um avanço significativo ocorreu com o advento da Lei nº 14.470/2022, que aprimorou o regime das ARDCs e adicionou novos dispositivos à Lei de Defesa da Concorrência. A partir de então, a lei antitruste brasileira passou a estabelecer de maneira expressa: (i) que o prazo prescricional para o ajuizamento das ARDCs fica sustado durante o curso do inquérito ou do processo administrativo no âmbito do CADE (Art. 46-A, caput); (ii) o prazo prescricional de cinco anos das ARDCs, a contar da ciência inequívoca do ato ilícito (Art. 46-A, §1º); (iii) a publicação do julgamento final do processo administrativo pelo CADE como marco temporal relativo à ciência inequívoca do ilícito (Art. 46-A, §2º).
Além disso, a Lei de Defesa da Concorrência também passou a disciplinar que: (iv) os prejudicados pelos danos concorrenciais terão, em regra, direito a ressarcimento em dobro; (v) a decisão condenatória do Plenário do Tribunal do CADE é apta a fundamentar a concessão de tutela da evidência nas ARDCs.
A introdução desses dispositivos na Lei de Defesa da Concorrência e a sua consciente aplicação pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) em relevantes julgados são dignas de celebração, na medida em que contribuem para a criação de um ambiente hostil não mais às vítimas de ilícitos concorrenciais, mas aos autores destes, já que importantes obstáculos ao ajuizamento das ARDCs foram removidos pela Lei nº 14.470/2022, servindo de estímulo à difusão da aplicação privada da Lei antitruste no Brasil.
De fato, a repressão às práticas anticoncorrenciais ocorre por meio de dois mecanismos complementares: o public enforcement e o private enforcement. O public enforcement consiste na atuação estatal a partir do CADE, autoridade que investiga, processa e aplica sanções administrativas a empresas envolvidas em cartéis e outras infrações à ordem econômica, como previsto nos artigos 36 e 37 da Lei de Defesa da Concorrência. Já o private enforcement, por sua vez, refere-se à atuação dos particulares na busca por indenização pelos danos sofridos.
A experiência antitruste brasileira revela que a aplicação da LDC pelo CADE (public enforcement), apesar da sua primordial relevância, é insuficiente para a efetiva coibição das condutas empresariais anticoncorrenciais, que estrangulam a inovação e comprometem a prosperidade econômica das vítimas.
Para que os objetivos do antitruste sejam efetivamente atingidos no Brasil, é indispensável que o public enforcement, concretizado pela aplicação de multas administrativas no âmbito do CADE, venha a ser robustamente complementado pelo private enforcement, com a reparação das vítimas de cartel pelas de empresas cartelistas.
Isto é, a previsão da aplicação privada da legislação antitruste não só é desejável, mas uma necessidade do país, como comprova a experiência internacional. É da sinergia entre o public enforcement e o private enforcement que nasce o poder dissuasório do direito antitruste.
A ainda escassa utilização das ARDCs no Brasil produz, em síntese, uma lei antitruste de pouca eficácia, incapaz de cumprir os objetivos para os quais foi concebida. Desde os primórdios da construção do antitruste no Brasil, que remontam ao Decreto-lei nº 869/1936, os seus objetivos estiveram ligados à proteção da economia popular, isto é, à realização do bem-estar comum, ao fortalecimento da nossa independência econômica e à satisfação do interesse do povo.
Os mencionados dispositivos da LDC, que pavimentam a via judicial às vítimas de cartel, fazem surgir a esperança de que essa importante virada de página constitua um passo fundamental na escrita de um novo capítulo do direito antitruste brasileiro, reconectado às suas próprias raízes, mais atento e protetivo às vítimas de ilícitos concorrenciais, cujos interesses individuais se confundem com as funções do antitruste, com os objetivos da ordem econômica que o estabelece, e com as aspirações de desenvolvimento econômico do país.
Este texto é um desdobramento do artigo “A hora e a vez das ações por danos concorrenciais”, publicado no jornal Valor Econômico em 29 de janeiro de 2025, de coautoria de Lea Vidigal e Ernesto Tzirulnik. A versão original está disponível em: <<.https://valor.globo.com/legislacao/coluna/a-hora-e-a-vez-das-acoes-por-danos-concorrenciais.ghtml >>
[1] MAGGI, Bruno Oliveira. O cartel e seus efeitos no âmbito da responsabilidade civil. 2010.. Dissertação (Mestrado em Direito) – Faculdade de Direito, Universidade de São Paulo, São Paulo, 2010.
[2]OCTAVIANI, Alessandro. Ordem Pública Econômica e comportamento empresarial predatório (Parecer). In: Problemas de Direito Econômico: Estudos e Pareceres. São Paulo. Editora Liberars, 2022.
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